A traição como direito de Estado
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Por Petrônio Souza |
Todo povo tem seu orgulho. O Brasil também tem o seu:
ser o país das delações premiadas. Aguardadas com certo fastio, as divulgações
das verdades ou versões contadas e depuradas em grampos e gravações - muitas
delas ilegais - ganham divulgação imediata e compartilhada, em todos os meios,
por todos. Nessa esteira de orgulho e satisfação nacionais, os delatores posam
na TV como pops stars da traição, canonizados pelas nossas instituições que
deveriam ser mais nobres, obtendo delas o perdão libertador.
O êxtase em flagrar o mal feito quase sempre é maior
que a revolta pelo dano causado à nação, ao futuro comprometido. Isso se revela
nas benesses concedidas ao delator, com salvas de herói caído de um povo.
Primeiro foi o Joaquim - português originário - Silvério dos Reis, até
hoje um nome bem brasileiro, sepultando os sonhos de um novo país, nascido do
ouro e da honra que não se tinha, e apenas um foi levado à forca. Visando o
benefício próprio, Joaquim entregou o seu amigo nos braços da morte, e nem foi
preciso um último beijo na noite escura da traição. Se não fosse a coragem
solitária de Tiradentes, a Inconfidência Mineira seria a mais longa e duradoura
página da vergonha nacional.
Quase cem anos antes, Borba Gato, desbravador do
mato, herói nacional, também fez a dele, revelando aos portugueses as minas de
ouro do Sabarabussu, se livrando do desterro e da pena de crime de lesa
majestade. Sua delação própria, confissão das conquistas da heroica bandeira
primeira, possibilitou o povoamento das Minas Gerais, que culminou com uma
guerra pátria, a dos Emboabas, e deu ao Estado que nascia e ao Brasil o sentido
de nação. Indo ao encontro da alma delatora do povo que em Minas ainda não
vivia, se deu o triste episódio que entrou para a história como o Capão da
Traição, quando os novos mineiros, os vencedores, abateram os paulistas
rendidos e vencidos.
Três séculos depois, as delações ideológicas levaram
à prisão e à execração pública de Gregório Bezerra e Francisco Julião, por
tornarem realidade um pioneiro projeto social e ideológico no nordeste deserto
de ideias, de programas, de esperança, de história. Tudo isso, por terem feito
a diferença, quando todos queriam ali, na extrema pobreza, sempre o igual.
Ideologicamente acovardada, a nação de cócoras coroa o que sempre foi objeto de
desprezo e indiferença aos povos: o delator.
O estado policialesco, desagregador, do medo; os
privilégios àquele que vigia e denuncia, que grava a reunião em que ele é um
dos atores, faz a insegurança nas convivências, faz um país menor, alicerçado
no que pratica a traição duas vezes. Esse é também a base da nossa justiça, que
avança na esteira da delação, encurtando assim o caminho do que deveria ser
investigado e fartamente provado e comprovado, seguindo os trâmites legais do
Estado de Direito, aquele que veio para substituir o Estado justiceiro. E a
justiça nacional, em todas as suas instâncias, com aplausos de toda nação,
pratica sua barbárie moral, institucional, ideológica; tudo isso, sem precisar
de um truculento e obsoleto AI-5. Na premiada e premeditada delação, temos a
alma da nação revelada. Vale lembrar que a etimologia da palavra companheiro é
“aquele que come comigo”.
Petrônio Souza Gonçalves é jornalista e escritor
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