Revista Época denuncia descaso nas investigações sobre a morte do jornalista Metzker
A vida de Evany José Metzker, torturado e
decapitado enquanto investigava traficantes e pedófilos na região mais
pobre de Minas Gerais
POR FLÁVIA TAVARES|
REVISTA ÉPOCA
Na manhã do dia 13, uma quarta-feira, o jornalista Evany José Metzker, também conhecido como Coruja,
levantou-se, tomou café com um pedaço de bolo, que não dispensava, e
avisou Cristiane, a filha da dona da pousada Elis, que precisava ir a
uma cidade próxima. Metzker havia se comprometido a dar uma palestra
naquela tarde no colégio da garota. Prometeu dar notícias se não
conseguisse voltar a tempo. A viagem de Padre Paraíso a
Teófilo Otoni, a 100 quilômetros dali, tomou-lhe quase o dia todo. A
palestra que ele daria, sobre exploração do trabalho infantil, ficaria
para a próxima semana. Metzker retornou à pousada, se desculpou com a
pupila, saiu para jantar com o amigo Valseque e, no fim do Jornal Nacional,
voltou ao hotelzinho de beira de estrada. Pediu que sua conta de três
meses fosse encerrada. Disse que iria a Brasília no dia seguinte e, na
volta, pagaria os R$ 2.700 que devia. Saiu novamente, deixando o
ventilador e a luz do quarto ligados. “Eu vou ali e volto”, avisou.
Metzker não voltou.
Na segunda-feira passada, dia 18, a Polícia Militar de Padre Paraíso,
no Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais, recebeu um
telefonema. Moradores da roça haviam visto o que parecia ser um corpo na
margem de uma estrada de chão batido, a 20 quilômetros do centro. Uma
viatura foi ao local. Dois policiais encontraram um corpo sem a cabeça,
que fora decepada já quase na altura dos ombros. As mãos da vítima
estavam amarradas sobre a barriga, numa corda alaranjada – a direita
sobre a esquerda. O homem estava seminu. Vestia apenas jaqueta, camiseta
e meias pretas. Mais adiante, avistavam-se um pé do sapato social e uma
calça preta. A armação dos óculos e uma lente estavam em outro ponto. O
cadáver se decompunha rapidamente. Estava muito inchado – sobretudo os
testículos. O perito apontou, mais tarde, que havia indícios de
sangramento anal e hematomas na genitália. O crânio foi encontrado a 100
metros do corpo. Possivelmente fora arrastado por cachorros, que
devoraram a pele e os olhos do homem. O maxilar estava quebrado,
descolado da cabeça. A cena de horror não continha uma gota de sangue. O
corpo fora arrastado até ali e o rastro ainda estava lá. O autor da
monstruosidade não se preocupou em ocultar o crime ou a identidade de
sua vítima. Deixou o cadáver na lateral da pista, a poucos metros de um
barranco profundo. A seu redor, os documentos espalhados: um título de
eleitor, um RG, um CPF, três folhas de cheque, dois cartões da Caixa
Econômica e uma carteira funcional do jornal Atuação. Todos em nome de
Evany José Metzker, de 67 anos. A camiseta preta ainda trazia do lado
direito do peito uma coruja amarela, marca do blog de Metzker, Coruja do
Vale. Nas costas, em letras maiúsculas, estava escrito: IMPRENSA.
Metzker tinha profundo orgulho de ostentar o título de repórter. Dizia
para o colega Valseque Bomfim, também blogueiro de Padre Paraíso: “Nós
somos jornalistas. Investigativos. Temos de investigar”. Valseque
resistia em firmar com Metzker uma parceria entre os blogs, como
propunha o forasteiro com insistência. Metzker chegara à cidade havia
pouco tempo. Valseque passou, então, a frequentar o quarto dele na
pousada. “O Metzker não me contava sobre as apurações que estava
fazendo. Só falava que queria ajuda, que queria trabalhar junto”, conta
Valseque. Metzker havia montado uma pequena redação em seu quarto.
Pediu a Elizete, dona do hotel, um roteador exclusivo, para ter acesso
estável à internet. Dispôs três mesas no pequeno cômodo, onde instalou
uma impressora, seu notebook e por onde espalhava muitos papéis. Fumava
incessantemente seus Hiltons e Hollywoods. O cheiro de tabaco impregnou
paredes, colchão e travesseiro, talvez de forma irreversível. Elizete
teme nunca mais conseguir alugar o quarto. “Eu chamava ele de Paulo
Coelho”, diz Elizete. “Ele tinha cavanhaque, era caladão. Só escrevia,
trabalhava e fumava. Nunca chegava depois das 10 da noite e jamais
trouxe mulher para cá.” Nos poucos momentos em que se descontraía,
Metzker dava conselhos às filhas de Elizete. Inclusive a Cristiane, que
queria ser jornalista e para quem ele fez uma carteirinha de repórter
aprendiz. Repetia que elas precisavam estudar e levar uma vida regrada,
como a dele. Metzker não falava muito do passado, nem com a própria
mulher, Ilma. Mas contou às meninas que fora desenhista da polícia.
Fazia retratos falados. De fato, desenhava muito bem. Também dizia que
fora militar, sem entrar em detalhes. Só vestia roupas sociais e gostava
de tingir o cavanhaque, que alternava com um espesso bigode.
A profissão de jornalista foi construída a partir de 2004. No ano
anterior, Metzker conhecera Ilma. Ele era de Belo Horizonte, mas
trabalhava em Montes Claros, dando suporte de informática em um
hospital. Ilma estava ali acompanhando o primeiro marido, que tinha
câncer. Meses depois da morte do marido, Ilma retomou contato com
Metzker. Numa tarde de dezembro de 2003, Metzker foi visitá-la em
Medina, uma cidade pequena e charmosa do interior de Minas. Ficou. Lá,
montou o jornal Atuação, que imprimia numa gráfica de Montes Claros.
Fazia denúncias sobre a administração da cidade, sobre ruas esburacadas e
sobre a falta de atendimento nos postos de saúde. Queria mais. Dez anos
depois de dar início a sua carreira de repórter, sentia que não era
reconhecido por seu trabalho. Em 2014, então, passou a viajar pela
região, buscando notícias mais quentes. Mantinha bom relacionamento com
policiais, militares e civis, de todas as cidades por onde passava. Seu
blog, que lhe rendeu o apelido de Coruja, noticiava muitas ocorrências
policiais. Percorreu quase todo o nordeste de Minas, passando por
Almenara, Divisa Alegre, Itinga, Araçuaí, Itaobim… Hospedava-se em uma
dessas cidadezinhas e, nos finais de semana, voltava a Medina, para
ficar com Ilma e com os três filhos dela, que criou como seus. Quando os
pequenos anúncios no blog escasseavam, fazia bico bolando logotipos
para empresinhas das cidades. Vivia com pouco. Queria construir uma
reputação, ser referência. “Aos poucos, as pessoas começaram a procurar
ele para contar o descaso das autoridades”, diz Ilma, que nunca viu um
diploma de jornalista do companheiro. Metzker lhe garantia que havia
estudado. “Ele era muito responsável, só publicava se tivesse certeza,
documento.”
Seguindo sua turnê investigativa, no dia 13 de fevereiro deste ano
Metzker encontrou morada em Padre Paraíso. Na entrada da cidade, um
letreiro enuncia que este é o “Portal do Vale do Jequitinhonha”. É a
chegada à região com os piores índices de desenvolvimento de Minas
Gerais – a área representa menos de 2% do PIB do Estado. Não há político
em campanha que não prometa uma salvação para o infame “vale da
miséria”. Padre Paraíso se espalha por dois morros, rasgada ao meio pela
BR-116, a estrada que liga o Ceará ao Rio Grande do Sul. São quase
5.000 quilômetros, trafegados pesadamente por caminhões. Padre Paraíso,
com seus pouco menos de 20 mil habitantes, é aquele tipo de cidade que
nasceu em torno de um posto de gasolina. Casebres ladeados de
borracharias e botecos margeiam a estrada. Há um pequeno centro
comercial, movimentado e bem popular. A tradicional igreja na pracinha
está oprimida pelas dezenas de templos evangélicos que a cercam. A casa
mais bonita da cidade é a da prefeita Dulcineia Duarte, do PT.
Cabeleireira, ela assumiu a candidatura do marido, Saulo Pinto,
impugnada pela Justiça Eleitoral.
É uma cidade de passagem. Caminhoneiros estacionam nos postos para
descansar, beber, farrear. Numa rua paralela à rodovia, um pequeno bar
de madeira abriga as negociações entre os motoristas e os aliciadores de
menores para prostituição. “Este é um dos problemas mais graves que
temos aqui”, diz o tenente Sandro da Costa, da Polícia Militar. “Já
flagramos uma criança de 10 anos fazendo sexo oral em um mendigo por R$
5.” Não há descrição mais bem acabada da miséria. “Muitos pais vendem os
filhos para a prostituição, é a fonte de renda da família”, completa o
tenente. À noite, algumas garotas se exibem na margem da BR-116, e, numa
nova modalidade de crime, quando o caminhoneiro desce para negociar o
programa, garotos o abordam, assaltam e agridem. Metzker se interessava
pelo assunto. Começou a investigar a rede de prostituição infantil nas
cidades da região. Seria o tema de sua palestra na escola da aprendiz de
repórter. Não se sabe quanto ele avançou na apuração.
Padre Paraíso tem um pequeno destacamento da Polícia Militar, com 13
homens e duas viaturas. Uma está com os pneus carecas; a outra, sem
freio. A caminhonete, que alcançava as áreas rurais mais longínquas,
ficou destruída num acidente em 2013. Não foi reposta. A propósito, o
acidente aconteceu porque o soldado que a dirigia adormeceu. Como a
delegacia de Padre Paraíso fecha às 18 horas e nos finais de semana,
qualquer ocorrência nos intervalos tem de ser registrada em Pedra Azul, a
mais de 150 quilômetros dali. Os PMs levam o criminoso na viatura,
frequentemente sentado ao lado da vítima, que vai depor. Dirigem por
horas, prestam esclarecimentos e voltam sonolentos pela BR. É em Pedra
Azul também que a delegada de Padre Paraíso, Fabrícia Nunes Noronha, dá
seus plantões semanais – ela manteve a rotina mesmo depois de o corpo de
Metzker ter sido encontrado. Padre Paraíso não tem comarca, juiz. A lei
está longe.
Com tão pouca vigilância, o crime prospera. Em 2014, foram seis vítimas
de assassinato. Neste ano, já foram cinco. Dois dos crimes mais
recentes são bárbaros, como o que matou Metzker. Um deles foi uma
chacina, que vitimou três idosos e uma criança de 7 anos. No outro, um
casal de caseiros foi morto a marteladas. “O ranço de violência da
cidade vem dos tempos dos garimpos”, diz o tenente Costa. “A cultura é
de resolver tudo na bala, na morte.” O tráfico de drogas foi
substituindo, aos poucos, o lucro com as pedras águas-marinhas que
rendiam fortunas. O crack se espalhou. Metzker tentava mapear as
estradas vicinais, de terra, que serviam de rota de fuga de traficantes –
e seu corpo foi encontrado justamente numa delas. Ele passou a se
interessar também por outros dois esquemas criminosos na área: a compra e
venda de motos roubadas, que são depois usadas como mototáxi, e o
aterro de terrenos protegidos pelas leis ambientais. Se já estão livres
das investigações policiais, os bandidos certamente não querem um
jornalista fuçando em seus negócios. Fazer jornalismo em regiões como o
Vale do Jequitinhonha é mais do que profissão, do que um diploma que
autorize alguém. É um ato de coragem, de enfrentamento da falta de
estrutura mínima de segurança, da miséria humana explorada por
criminosos.
Não está claro se Metzker estava no faro de algo certeiro. Em seu blog,
ele publicou apenas histórias menos ameaçadoras, como a do uso de
carros públicos para fins particulares ou a de um garoto que tinha
sérios problemas bucais e estava sem atendimento. Elizete, a dona da
pousada, provocava Metzker: “Tô achando o senhor muito fraquinho. Essas
historinhas aí não estão com nada”. O jornalista replicava,
pacientemente. “Calma, menina. Muita coisa ainda vai mudar nesta
cidade.” A polícia recolheu o notebook e as anotações de Metzker para
tentar identificar alguma pista. A delegada Fabrícia, primeira a
comandar a investigação, insiste que há a possibilidade de um crime
passional. Ilma, a mulher de Metzker, nega com firmeza. “Ele me dava
notícia de cada passo que dava. A gente trocava recado sem parar. Ele
nunca tinha ido a Brasília antes, a história não fecha.” Na noite em que
desapareceu, Metzker enviou a última mensagem pelo WhatsApp para a
mulher, dizendo que ia jantar e que eles se falariam mais tarde. “Nunca
vou esquecer o que aparece no celular: ‘Metzker, visto pela última vez
às 19h03’”, Ilma chora.
A morte brutal de Metzker não mobilizou as forças policiais do Estado
de Minas Gerais imediatamente. Depois que o corpo foi liberado do IML e
seguiu para Medina, três investigadores de Padre Paraíso começaram
lentamente as diligências. A delegada Fabrícia viajou na noite de terça-feira
para seu plantão rotineiro em Pedra Azul. Um dos investigadores avisou
logo que só atenderia a reportagem na quarta-feira se fosse até as
16h30, quando ele iria para a faculdade. Apesar da barbárie, o silêncio
foi absoluto. O governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel, do PT,
não disse palavra sobre o caso. O ministro da Justiça, José Eduardo
Cardozo, também não. Nem mesmo o secretário de Direitos Humanos da
Presidência da República, Pepe Vargas, pronunciou-se. Todas essas
autoridades, mesmo provocadas por ÉPOCA, permaneceram caladas. (Na tarde
da sexta-feira, Pepe finalmente falou. Disse que o caso é grave e vai
acompanhá-lo.)
Após ÉPOCA noticiar em seu site a falta de empenho nas investigações, o governo de Minas se mexeu. Uma equipe de Belo Horizonte chegou a Pedro Paraíso
na noite de quarta-feira: um delegado, quatro investigadores e uma
escrivã. Na quinta-feira pela manhã, eles estavam no local onde o corpo
foi encontrado. De lá, seguiram para a delegacia, onde pediram o
material apurado até ali pelos policiais da cidade. Antes do meio-dia, o
acesso ao inquérito já estava bloqueado para os investigadores locais.
Não havia nenhuma pista de quem decapitou o jornalista Metzker.
:
Emerson Morais, o delegado de Belo Horizonte que assumiu o caso,
comandou as investigações, em 2013, do assassinato de Rodrigo Neto,
jornalista de Ipatinga, no Vale do Aço de Minas. Rodrigo denunciava a
atuação de policiais corruptos e homicidas da região. Um mês depois, o
fotógrafo Walgney Carvalho também foi morto, depois de ter dito pela
cidade que sabia quem havia assassinado Rodrigo. Um policial civil foi
condenado pela morte de Rodrigo. Um outro rapaz, conhecido como Pitote,
ainda será julgado por envolvimento nos dois crimes. O delegado Morais
foi procurado pelo blogueiro Valseque, o amigo de Metzker. Valseque
contou que fora ameaçado. Um amigo disse a ele que um homem havia
perguntado por Valseque num bar. Quando soube que Valseque estava na
cidade, comentou que “pegaram o homem errado”. Seu blog, Lente do Vale,
publica o mesmo tipo de matérias que o de Coruja.
Metzker não pôde ser velado – o cheiro do corpo decomposto extravasava mesmo com a urna lacrada. Não houve flores. A filha mais velha, Sara, não teve tempo de chegar de Belo Horizonte para se despedir do pai. À meia-noite de segunda-feira, dez parentes e amigos acompanharam o corpo até o cemitério de Medina. O caixão de Metzker ainda não foi coberto com terra ou cimento. Aguarda a documentação para o sepultamento completo. O caso segue aberto, assim como a sepultura de Metzker.
Metzker não pôde ser velado – o cheiro do corpo decomposto extravasava mesmo com a urna lacrada. Não houve flores. A filha mais velha, Sara, não teve tempo de chegar de Belo Horizonte para se despedir do pai. À meia-noite de segunda-feira, dez parentes e amigos acompanharam o corpo até o cemitério de Medina. O caixão de Metzker ainda não foi coberto com terra ou cimento. Aguarda a documentação para o sepultamento completo. O caso segue aberto, assim como a sepultura de Metzker.
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