Quintino de Rio Pardo e as reformas temerosas

Por Levon Nascimento
Há 129 anos, em 13 de maio de 1888, a regente do Império do Brasil princesa Isabel, na ausência do pai o imperador dom Pedro II, em viagem ao exterior, assinou a famosa Lei Áurea, colocando fim a quase quatro séculos de escravidão no país. Fim legal, pois as formas de trabalho análogas ao escravismo continuariam a existir em solo brasileiro até os dias atuais.

Por motivos de argumentação e de curiosidade histórica, relato dois fatos pitorescos ocorridos naqueles dias no Vale do Rio Pardo (norte de Minas). Recorro à coleção de informações apresentadas nos quatro volumes da obra “Efemérides Riopardenses”, publicada em 1998 pelo cônego Padre Newton de Ângelis, da cidade de Rio Pardo de Minas.

A 11 de junho de 1888, vinte e oito dias depois da abolição, os poderes públicos da região ainda se encontravam na “árdua” tarefa de proteger o patrimônio privado e desfigurar a dignidade humana. Em Rio Pardo, o delegado de polícia mandou amarrar em frente à porta da casa do subdelegado um negro chamado Quintino, que chegara à cidade em 19 de maio (quatro dias depois da publicação da Lei Áurea), “fugindo de seu dono”, morador de São José do Gorutuba, região da futura Janaúba. O “dono”, um tal de Vitorino Nunes de Brito, à revelia das autoridades, ameaçava levar o negro de trinta e poucos anos amarrado ao rabo do cavalo de volta à sua fazenda.

Pela lei da princesa, Vitorino não era mais senhor de escravos, Quintino era um homem livre e mesmo que não fosse a legislação da época também não permitiria tal atrocidade, caso empregada corretamente pelas autoridades. Porém, pouco importava. Valia mesmo era a noção torta de propriedade, atrelada aos conceitos de autoritarismo, patrimonialismo, racismo e latifúndio, marcas da colonização e da formação do Estado brasileiro e de nossa sociedade. Em outras palavras, corrupção da lei. Característica ainda muito forte nestas terras esquecidas do Vale do Rio Pardo. Vitorino rugia enquanto Quintino sangrava.

Também em Rio Pardo, a 12 de julho de 1888 – um mês adiante –, o vereador Atanásio Silva sugeriu à Câmara Municipal rio-pardense a nomeação de uma praça com o nome de TREZE DE MAIO, em homenagem à libertação dos escravos. Segundo relatos, foi naquele espaço, alguns dias depois de 13 de maio (sem exatidão de data), que os ex-escravos “fizeram a grande festa da liberdade (...) e batucaram (...) até o alvorecer do dia seguinte”. Não sei se a praça ainda existe com o mesmo nome naquela cidade.

A verdade é que no episódio de Quintino, as autoridades já sabiam do fim legal da escravidão. O episódio da festa da liberdade na praça comprova isso. Por que não intervieram no assanhamento do ex-dono que queria levar o jovem ex-escravo de volta à senzala? Pior, por que elas próprias algemaram um homem livre e inocente à porta do subdelegado?

Talvez a resposta esteja na cultura da violência autoritária e na desumanização do outro, sempre presentes na história brasileira, sobretudo quando se trata do negro, dos indígenas, do desvalido (vide o caso da guarda municipal de São Paulo, seguindo ordens do prefeito, tomando colchões e cobertores de moradores de rua em pleno frio paulistano), da mulher, do submisso, do indefeso, enfim, do pobre. Só é gente para as autoridades encasteladas no Estado brasileiro aqueles que se apresentam como proprietários. A condição humana apenas, não basta.

Quintino, “o negro forro” que fugiu dos maus-tratos, mesmo tendo a lei a seu favor, não tinha a proteção do Estado de Direito que lhe garantisse a liberdade e o respeito frente a um senhor ilegítimo e cruel. Ele representa, com altas cores de atualidade, os brasileiros trabalhadores de 2017. Cidadãos que a despeito das garantias da avançada Constituição de 1988 estão à mercê da gangue temerária que se apossou da República com o golpe de 2016.

O Estado brasileiro sempre esteve comprometido com a manutenção do status quo da elite perdulária, perpassado por um ou outro período em que esse predomínio plutocrático se fez menor ou ameaçado. O getulismo, o janguismo e o lulismo se constituíram nesses curtos momentos, mas todos igualmente golpeados e fulminados pelos “verdadeiros” donos do poder.

As medidas do governo Temer, tais como o teto dos gastos públicos para a seguridade social, a selvagem lei das terceirizações, a reforma trabalhista que mata a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) aprovada sob Getúlio Vargas, o desmanche das políticas públicas da era Lula-Dilma e a indefectível reforma da previdência, que pretende fazer com que os brasileiros morram sem se aposentar, são comparáveis – em forma e conteúdo – à desenvoltura com que Vitorino Nunes de Brito, diante do delegado de polícia, afrontava a lei vigente ameaçando de morte alguém que não lhe pertencia mais, mas que estava atado a um tronco por quem lhe deveria dar segurança. Nossa pergunta: onde estão as instituições, como o STF, que nos deveriam proteger da sanha dos golpistas de hoje?

Se o povo brasileiro não desafiar a conjuntura e se reunir na praça, como aqueles negros de Rio Pardo de Minas nos dias que se seguiram à Lei Áurea e, com força, celebrarem a liberdade com batuques, palavras de ordem e enfrentamentos de luta, até o alvorecer de uma República mais justa, as reformas dos senhores de escravos de hoje passarão e reduzirão os trabalhadores à condição de indivíduos prostrados, como Quintino, prontos para serem arrastados pelo humilhante rabo do cavalo da história.

Às ruas. Às praças. Para Brasília.

* Levon Nascimento é professor de História, sociólogo e mestrando em “Estado, Governo e Políticas Públicas” pela Fundação Perseu Abramo e Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais.

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